Igreja de Tiatira | Estudo da Carta na Bíblia e seu contexto

O livro de Apocalipse começa com uma sequência de pequenas cartas destinadas a sete igrejas na Ásia Menor, (atual Turquia), que existiam na época do apóstolo João. São elas a igreja de Éfeso (Apocalipse 2:1–7), a igreja de Esmirna (Apocalipse 2:8–11), a Igreja de Pérgamo (Apocalipse 2:12–17), a Igreja de Tiatira (Apocalipse 2:18–29), a Igreja de Sárdis (Apocalipse 3:1–6), a igreja de Filadélfia (Apocalipse 3:7–13) e a igreja de
Laodiceia (Apocalipse 3:14–22).

Cada uma dessas cartas inclui uma mensagem pertinentes a cada igreja, e delas podemos tirar muitas lições para nós ainda hoje.

A quarta carta é para a igreja de Tiatira. É a mais longa das sete cartas, e a que se dirige à menos importante das sete cidades. Plínio chegou a dizer que Tiatira era uma cidade sem importância. Entretanto, como veremos, o problema que Tiatira enfrentava e o perigo que corriam os cristãos nela era idênticos com os que a igreja devia enfrentar em todas as cidades da Ásia.

Geografia de Tiatira

Tiatira estava localizada no longo vale que conecta os rios Hermus e Caico. Na atualidade é sulcada por uma linha ferroviária. A importância de Tiatira era sua posição geográfica.

Mapa com a localização das sete igrejas do Apocalipse
Mapa com a localização das sete igrejas do Apocalipse

Tiatira estava no caminho que unia Pérgamo a Sardes, e que seguia até Filadélfia e Laodicéia, numa rota por onde podia chegar-se até Esmirna e Bizâncio. Era o caminho por onde viajava o correio imperial; por esse caminho se transportava todo o intercâmbio comercial entre a Europa e Ásia. Portanto, e acima de tudo, Tiatira era uma cidade comercial importante.

Do ponto de vista estratégico, a importância de Tiatira era que ela fechava o acesso a Pérgamo, e Pérgamo era a capital da província. As primeiras notícias que temos de Tiatira nos descrevem isso como uma guarnição fortificada, onde soldados macedônios estavam em serviço, prontos para proteger Pérgamo. Mas Tiatira não podia suportar um cerco prolongado, porque estava no meio de um vale aberto. Tudo o que Tiatira podia fazer era atrasar o avanço das tropas inimigas e dar tempo a Pérgamo para preparar suas defesas. Tiatira era, portanto, do ponto de vista estratégico, uma cidade de fronteira muito importante.

Ruínas de Tiatira. | Por Klaus-Peter Simon
Ruínas de Tiatira. | Por Klaus-Peter Simon

Tiatira não tinha nenhum significado religioso especial. Não era centro da adoração de César nem havia nela templos gregos de algum significado especial. Seu deus local era o herói militar Tirimno, que aparece nas moedas antigas montando a cavalo e armado com uma tocha e um porrete.

A única coisa fora do comum com relação a Tiatira, do ponto de vista religioso, era que nela funcionava um santuário de adivinhação (oráculo), presidido por uma sacerdotisa conhecida com o título de Sambate. A Igreja de Tiatira não enfrentava um perigo especial de perseguições.

Qual era, então, o perigo e a ameaça em Tiatira? Tiatira é a cidade, entre as sete, com relação à qual sabemos menos coisas; é muito difícil, então, reconstruir a situação. A única coisa que sabemos positivamente era que funcionava como um importante centro comercial. Era, em especial, o centro da indústria do tingido e do comércio de tecidos de lã. Lídia, a vendedora de púrpura, provinha de Tiatira (Atos 16:14).

Tiatira era a sede de várias guildas de comércio importantes. Estas guildas eram uniões ou sindicatos de pessoas que trabalhavam num mesmo ramo da indústria ou comércio e tinham objetivos tanto de mútua proteção e benefício como de tipo social e recreativo.

Em Tiatira havia guildas de operários da lã, do couro, do linho e do bronze, de modistas, de tintureiros, de oleiros, de padeiros e de traficantes de escravos. Por este lado, devia encontrar-se o problema da Igreja em Tiatira. Negar-se a integrar uma dessas guildas devia ser, naquela época como negar-se a integrar o sindicato do ofício em que a pessoa trabalha. Significaria, supomos, perder toda esperança de prosperar no comércio ou na indústria. Que razões podia ter um cristão para negar-se a fazer parte da guilda que correspondia ao seu ofício?

Havia duas características das guildas que podiam resultar inconvenientes para os cristãos.

Em primeiro lugar celebravam periodicamente banquetes. Estes banquetes, como era habitual, tinham lugar nos templos pagãos. Mesmo se fossem feitos numa casa particular, iniciavam-se e concluíam com algum tipo de ato religioso formal, e a carne que se consumia neles era sempre carne que tinha sido sacrificada aos ídolos. Podia um cristão participar de uma comida com estas características?

Em segundo lugar, estes banquetes eram, em geral, ocasião para atos licenciosos e bebedeiras. Podia um cristão estar presente em celebrações sociais deste tipo?

Este era o problema de Tiatira. Não havia ameaça de perseguição; o perigo estava dentro da igreja. Na igreja, havia cristãos que se perguntavam por que um crente não podia pertencer à guilda de seu ofício, e por que devia sacrificar seus interesses comerciais ao negar-se a fazer parte do sindicato que lhe correspondia. Os que se perguntavam estas coisas muito possivelmente argumentassem que o cristão era sempre defendido pelo Espírito Santo e pela presença de Cristo, e que precisamente por isso não fazia nada mau ao participar nas celebrações sociais convocadas pelas guildas.

Em outras palavras, em Tiatira havia um movimento bastante forte, presidido por uma mulher que no Apocalipse é chamada de Jezabel, que sustentava a necessidade de entrar em um acordo com o mundo e com as normas de moralidade mundanas, a fim de não arriscar o êxito dos negócios e a prosperidade material. A resposta de Cristo é inequívoca. O cristão não pode ter nada a ver com tais coisas. 

O problema de Igreja em Tiatira era um problema universal. É um problema que ainda seguimos tendo hoje: Pode o cristão comprometer-se com o mundo, e se puder, até que ponto deve fazê-lo? 

Carta para a Igreja de Tiatira

E ao anjo da igreja de Tiatira escreve: Isto diz o Filho de Deus, que tem seus olhos como chama de fogo, e os pés semelhantes ao latão reluzente:
Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras.
Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria.
E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu.
Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras.
E ferirei de morte a seus filhos, e todas as igrejas saberão que eu sou aquele que sonda os rins e os corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas obras.
Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei.
Mas o que tendes, retende-o até que eu venha.
E ao que vencer, e guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei poder sobre as nações,
E com vara de ferro as regerá; e serão quebradas como vasos de oleiro; como também recebi de meu Pai.
E dar-lhe-ei a estrela da manhã.
Apocalipse 2:18-28

O estado da Igreja em Tiatira 

Das sete cartas, a carta a Tiatira é a mais enigmática. Possuímos pouca informação sobre Tiatira e sobre o pano de fundo da Igreja que havia nessa cidade. No caso das outras cidades, sabemos bastante sobre o contexto das cartas e temos condições de compreender o que estava acontecendo nas Igrejas. Mas no caso de Tiatira dispomos de pouca informação.

Vamos começar nossa investigação com quatro perguntas. Qual era, em realidade, a situação da Igreja nessa cidade? Quem era essa mulher, Jezabel, aparentemente o centro do problema? Quais eram em realidade seus ensinos? O que significam as promessas que a Igreja recebe em Tiatira?

Qual era realmente a situação da igreja em Tiatira?

A carta começa com uma descrição do Cristo ressuscitado que contém uma ameaça. Seus olhos como labaredas de fogo e seus pés como bronze polido. A descrição é tirada de Daniel 10:6, onde um mensageiro angélico tem “os seus olhos, como tochas de fogo, os seus braços e os seus pés brilhavam como bronze polido.”

Em tudo isto há algo de espanto, terror e reverência. Os olhos chamejantes significam pelo menos duas coisas: em primeiro lugar, a ira acesa do Cristo ressuscitado em face do pecado; em segundo lugar, a tremenda e arrepiante penetração desse olhar que nos descobre de todo disfarce e entra até revelar nossos segredos mais íntimos. Quanto aos pés de bronze, significam sem dúvida o poder inflexível e invencível do Cristo que esteve morto e agora vive. Uma mensagem que começa desta maneira sem dúvida não terá nada de tranquilizador e consolador. Mas a carta continua, surpreendentemente, em termos de elevadíssimo louvor.

A Igreja em Tiatira é felicitada por seu amor, lealdade no serviço e fiel paciência. Deve notar-se como estas grandes virtudes aparecem aos pares. O serviço é um resultado do amor, a paciência é o produto da lealdade. Há algumas coisas, pelo menos, nas quais a Igreja em Tiatira melhorou desde os dias de seu começo.

Depois temos a condenação dessa mulher Jezabel, de suas atitudes e de seus ensinos. Jezabel tinha uma grande influência sobre a igreja. A conclusão parece ser a seguinte: na superfície, a Igreja em Tiatira parecia forte e florescente. Qualquer estranho que a visitasse ficaria impressionado por sua vitalidade e energia, por sua aparente liberalidade e por sua paciência. Entretanto, havia algo essencial que lhe faltava: em seu coração mesmo havia uma rachadura.

Aqui temos uma advertência. Uma Igreja cheia de gente, um verdadeiro favo de energia, um dínamo de atividade, não é necessariamente uma verdadeira Igreja. É muito fácil encher de gente uma Igreja quando os fiéis vêm para ser entretidos e não para ser instruídos, para ser tranquilizados e justificados em vez de ser desafiados, confrontados com a realidade de seus pecados e com a oferta da salvação. Uma Igreja pode chegar a estar cheia de energia e, entretanto, ter perdido o centro de sua vida. Em vez de ser uma congregação cristã, conseguiu converter-se num clube bem-sucedido. A situação da Igreja em Tiatira deve nos levar a pensar sobre nossa igreja hoje.

Ruínas de Tiatira
Ruínas de Tiatira. | Por Akkinvet

A história de Jezabel

O problema de Tiatira girava em torno de uma mulher a quem na carta chama-se Jezabel. Quem era esta mulher? Oferecem-se várias respostas, como você pode ver em nossa matéria sobre quem foi Jezabel.

No Antigo e no Novo Testamento, encontramos algumas mulheres que falavam na igreja – chamadas profetisas. No Antigo Testamento, temos Miriam (Êxodo 15:20), Débora (Juízes 4:4), Hulda (2 Reis 22:14); e no Novo Testamento temos Ana (Lucas 2:36) e as quatro virgens, filhas de Filipe (Atos 21:9). Era perfeitamente possível que uma mulher chegasse a ser profetisa na Igreja.

Esta mulher, em Tiatira, é chamada de Jezabel. Não sabemos quem de fato era a Jezabel de Tiatira, mas podemos imaginar como ela era baseando-nos na personalidade da possuidora original deste nome, que aqui se aplica a ela como apelido – a Jezabel original havia morrido cerca de mil anos antes.

Há poucas mulheres que tenham adquirido uma reputação de perversidade tão notória como Jezabel. Era a filha de Etbaal, rei de Sidom, e a esposa de Acabe (I Reis 16:31). Quando veio de Sidom trouxe consigo seus deuses, e fez com que Acabe e seu povo adorassem a Baal. Ela não queria eliminar o culto ao Senhor. Mas os profetas de Jeová teriam que aceitar que, além de seu Deus, se adorasse o deus de Sidom – coisa que os profetas não aceitariam jamais. Então Jezabel mandou matar os profetas do Senhor, buscando exclusivismo, e sustentava quatrocentos e cinquenta profetas de Baal (I Reis 18:13,19). Era o gênio maligno de Acabe; em particular foi a responsável pelo assassinato do Nabote, o dono da vinha cuja propriedade Acabe cobiçava (I Reis 21). Seu nome chegou a ser sinônimo de “prostituição e bruxaria” (2 Reis 9:22).

Era uma mulher notoriamente imoral, que seduziu a Acabe e a Israel para que se separassem do culto do verdadeiro Deus. Tudo isto deve significar que a Jezabel de Tiatira era uma mulher má e corruptora que exercia sua influência para apartar a Igreja de sua pureza de vida e a adoração do verdadeiro Deus. Deve entender-se entretanto, que seu propósito não era destruir a Igreja, mas sim introduzir nela novas práticas que, a longo prazo, terminariam em destruí-la.

Jezabel deve ter sido uma dessas pessoas que querem modificar o cristianismo para que se adapte a sua própria modalidade e que se creem capazes de melhorar os ensinos de Jesus Cristo. 

Jezabel, Por Byam Shaw
Jezabel, Por Byam Shaw

Os ensinos de Jezabel sobre a carne oferecida aos ídolos

Acusa-se a esta mulher, Jezabel, de ensinar duas coisas: que os cristãos podiam cometer práticas sexuais imorais e que podiam comer carne que tinha sido oferecida aos ídolos.

Um dos grandes problemas da igreja naquela época era a carne que tinha sido oferecida aos ídolos. Os cristãos eram confrontados em sua vida cotidiana. Quando alguém oferecia um sacrifício num templo grego, somente uma parte muito pequena da carne era queimada no altar. Às vezes, só eram queimados uns poucos cabelos cortados da frente do animal. Os sacerdotes recebiam uma parte da carne, como sua remuneração, e o ofertante levava o resto.

Com a carne que recebia o ofertante costumava celebrar uma festa dentro do recinto do templo, a qual convidava a seus amigos (o prato principal do banquete era a carne). A maioria das festas e banquetes celebravam-se nos templos. O convite em geral dizia: “Convido-o a comer comigo na mesa de nosso Senhor Serapis”. Se não queria celebrar um banquete no templo, podia levar a carne para sua casa e usá-la ali para seu próprio consumo, ou para algum festejo familiar.

Este era o problema dos cristãos: Podia um crente em Jesus Cristo assistir a um banquete num templo pagão? Podia, fora no templo ou em qualquer outro lugar, participar de uma comida cuja carne tinha sido sacrificada em honra de algum ídolo? Paulo se ocupa deste problema em 1ª Coríntios capítulos 8 a 10.

Contudo, nem todos têm esse conhecimento. Alguns, ainda habituados com os ídolos, comem esse alimento como se fosse um sacrifício idólatra; e como a consciência deles é fraca, esta fica contaminada.
A comida, porém, não nos torna aceitáveis diante de Deus; não seremos piores se não comermos, nem melhores se comermos.
Contudo, tenham cuidado para que o exercício da liberdade de vocês não se torne uma pedra de tropeço para os fracos.
Pois, se alguém que tem a consciência fraca vir você que tem este conhecimento comer num templo de ídolos, não será induzido a comer do que foi sacrificado a ídolos?
Assim, esse irmão fraco, por quem Cristo morreu, é destruído por causa do conhecimento que você tem.

Quando você peca contra seus irmãos dessa maneira, ferindo a consciência fraca deles, peca contra Cristo.
Portanto, se aquilo que eu como leva o meu irmão a pecar, nunca mais comerei carne, para não fazer meu irmão tropeçar.

1 Coríntios 8:7-13

Devemos lembrar que na antiguidade cria-se intensamente na existência de demônios; para os cristãos, os deuses pagãos eram demônios; uma das formas mais fáceis para entrar no corpo de um homem e possuí-lo era que o demônio pousasse na comida de sua vítima.

A carne sacrificada num templo pagão era comida que tinha sido oferecida, para seu uso, a um demônio. Podia o cristão comer essa carne? Podia sentar-se num banquete sabendo que se ia oferecer essa carne a um ídolo?

Mesmo tendo a Cristo dentro de si como o mais poderoso antídoto contra todo mal, era correto que, ao participar dessas celebrações, aparecesse diante de outros como alguém que favorecia e aprovasse esse tipo de práticas, para ele nada menos que a adoração de falsos deuses que em realidade eram demônios?

O problema se complicava pois até no açougue era muito provável que a carne tivesse sido previamente oferecida a algum deus pagão. Os sacerdotes dos templos pagãos não poderiam comer eles próprios toda a carne dos sacrifícios que faziam. O restante o vendiam aos açougueiros, em geral era a carne de melhor qualidade. O que podia fazer o cristão em tal caso?

Tudo isto nos pode parecer um problema muito remoto. Mas para os cristãos na época antiga, era uma realidade que tinham que enfrentar todos os dias de sua vida.

A igreja primitiva não tinha dúvida com relação a qual era o dever do cristão verdadeiro. A abstenção de tudo que tivesse sido consagrada a um ídolo foi uma das condições que os pagãos aceitaram (de parte dos judeus) para merecer o direito de ingressar na Igreja (Atos 15:29). A igreja primitiva sabia que os cristãos não deviam nem sequer tocar em coisas que tinham sido contaminadas desse modo.

A proibição com relação à carne que tinha sido oferecida aos ídolos tinha uma consequência de consideráveis alcances. Equivalia, na prática, a que o cristão ficava cortado de toda participação na vida social dos não crentes. Se o cristão devia abster-se de participar de qualquer coisa que tivesse sido dedicada a um ídolo, não havia virtualmente função social pagã, e especialmente festa ou banquete, em que pudesse participar.

Isto, por sua vez, tinha outra consequência, que, como vimos, provavelmente constituía o pano de fundo do problema em Tiatira. Na antiguidade todos os ofícios e profissões estavam organizados em guildas. Estas guildas celebravam frequentes reuniões sociais, que em geral consistiam em banquetes. Estes banquetes eram, pelo menos em parte, uma cerimônia religiosa. O mais comum era que se celebrassem em templos; começavam, sempre, com uma libação oferecida a algum deus e a comida era, é obvio, carne que tinha sido sacrificada.

A posição oficial da igreja era que o cristão não podia assistir a tais celebrações. Isto significava muito mais que perder uma oportunidade de divertir-se. Para um comerciante equivalia ao suicídio comercial. Se era um artesão, sua carreira estava condenada ao fracasso, pois não podia pertencer à guilda se não assistia a suas festas. Não somente lhe era difícil, mas provavelmente impossível continuar nos negócios ou no exercício de sua profissão.

Aqui, então, é onde Jezabel exerce sua influência. Seu ensino era que os crentes em Jesus Cristo não têm necessidade de eliminar-se deste modo da vida social; ensinava que não havia razão válida para que se abstivessem de participar nas atividades da guilda; ninguém tinha a obrigação de suicidar-se profissionalmente por ser cristão; não havia mal algum — ensinava — em aceitar os costumes e as modalidades do mundo.

A Igreja — dizia — deve acomodar-se ao mundo, chegar a um acordo com o mundo. E aqui, para ela, não se tratava de uma questão de princípios, mas sim da necessidade de proteger interesses comerciais. Para Jezabel, se havia um conflito entre os interesses comerciais e as normas cristãs, deve-se abandonar as normas cristãs, e isto não constitui, para ela, uma traição a Cristo.

Jezabel era uma dessas pessoas que amam sua própria prosperidade e dinheiro mais que a Igreja, e para quem as exigências do êxito comercial são mais importantes que as exigências de Deus.

Os ensinos de Jezabel sobre imoralidades

A segunda parte do ensino de Jezabel não é tão clara. Diz-se que ensinava a cometer imoralidade sexual (v. 20). A pergunta é a seguinte: Deve tomar-se literalmente esta referência à “fornicação”, ou no sentido metafórico que é frequente nas Escrituras? Refere-se à imoralidade sexual ou à infidelidade espiritual a Deus?

Não há dúvida que nas Escrituras a infidelidade a Deus se expressa em termos de imoralidade sexual e adultério. Israel é a esposa de Deus (Isaías 54:5; Jeremias 3:20); no Novo Testamento a Igreja é a esposa de Cristo (2 Cor. 11:1-2; Efésios 5:24-28). Em repetidas oportunidades, portanto, acusa-se a Israel de cometer adultério com outros deuses (Êxodo 34:15-16; Deuteronômio 31:16; Salmo 73:27; Oséias 9:1).

No Novo Testamento, a época que é infiel a Jesus Cristo é uma “geração má e adúltera” (Mateus 13:39; 16:4; Marcos 8:38). Acaso é isso o que se quer dizer aqui? É a imoralidade sexual que inculcava o ensino de Jezabel infidelidade espiritual a Jesus Cristo? Significa a adoração de deuses pagãos, ou pelo menos alguma forma de aceitação desse culto? Se este é o significado, “os que adulteram com ela” seriam os que flertam, por assim dizer, com essa classe de ensino, e seus filhos os que adotaram seu ensino e o seguem.

Esta interpretação não é de maneira alguma impossível. A tendência do paganismo era adquirir novos deuses. A religião pagã não era exclusivista; quase nunca obrigava a adorar a um só deus.

Tendia a pensar que devia haver algum elemento de verdade em todas as religiões e que, portanto, o mais prudente era oferecer adoração a todos os deuses, pelo benefício que cada um pudesse contribuir. Todas as casas romanas tinham seu larário, um pequeno templo familiar, onde se guardavam as imagens das lareiras, duas ou três divindades menores próprias da família.

No larário de Alexandre Severo, um dos imperadores, tinha imagens de Apolônio, Cristo, Abraão, Orfeu, e “outras pelo estilo”. É possível que Jezabel ensinasse que não era necessário exclusividade na adoração de Cristo, e sobretudo, que não era necessário negar-se a dizer “César é o Senhor” e queimar um pingo de incenso em seu altar.

larário romano
Larário romano

Possivelmente dissesse que não prejudicava o verdadeiro crente aceitar as formalidades rituais e cerimoniais do culto pagão. Se os cristãos fossem um pouco menos fanáticos nessas coisas seria fácil ganhar alguns pagãos a mais para Cristo e poupariam muitos problemas. Mas se a Igreja Cristã tivesse adotado esse ensino o cristianismo se tornaria outra das muitas religiões de que estava cheio o Império Romano. Os cristãos não sustentam que Jesus Cristo é um dos salvadores, nem sequer o principal deles, mas sim é o único.

Devemos entender, então, que Jezabel não ensinava a imoralidade sexual física, mas sim a imoralidade espiritual que é a infidelidade a Jesus Cristo? Há uma coisa na carta que nos impede de aceitar plenamente este ponto de vista.

Lemos que os seguidores de Jezabel pretendiam conhecer “as coisas profundas de Satanás” (versículo 24). Alguns eruditos pensam que estas palavras são as que o Cristo ressuscitado usa pejorativamente para descrever a falsa doutrina. O verdadeiro cristão conhece o que Paulo chama “as coisas profundas de Deus” (1 Coríntios 2:10, TB). Jezabel e seus seguidores conhecem, pelo contrário, as coisas profundas de Satanás.

Alguns sustentavam que era um dever experimentar todo tipo de pecado. O que se pretendia era deixar que o corpo afundasse no pecado, para que a alma e o espírito pudessem manter-se livres de desejos e necessidades pecaminosas.

Diziam que o homem que nunca tinha experimentado o prazer não tinha mérito algum quando se abstinha dele; que se não conhecia a luxúria, abandoná-la não era virtude; a verdadeira conquista era viver até o excesso no pecado, sem permitir que o pecado ganhasse a alma. A indulgência no prazer, portanto, era benéfica para a alma. Os que conheciam as coisas profundas de Satanás eram os que se tinham submerso no pecado, a fim de experimentá-lo. Jezabel talvez ensinasse que pecar era um dever para os cristãos.

O mais provável é que Jezabel ensinasse que o cristão deve acomodar-se ao mundo, que não devia rejeitar com rigidez as práticas mundanas. Ensinava que o cristão não tinha necessidade alguma de abster-se das práticas habituais nos círculos dirigentes da indústria e do comércio; que o cristão não tinha por que insistir em níveis superiores de ética e moralidade. Queria, em outras palavras, que os cristãos transigissem com o mundo. Ensinava à igreja uma infidelidade espiritual que sem dúvida também resultaria em infidelidades físicas.

A misericórdia de Deus quis que os ensinos de Jezabel não se convertessem em doutrina oficial da Igreja. Se tal coisa tivesse sucedido, se sucedesse alguma vez no futuro, o cristianismo não seria mais que uma forma culta e amável de paganismo. Com relação a isto Paulo disse: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente” (Romanos 12:2, TB).

E Jesus deu seu juízo definitivo sobre este assunto quando afirmou: “Ninguém pode servir a dois senhores … Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Mateus 6:24). A velha opção ainda continua sendo válida: “Escolhei hoje a quem sirvais” (Josué 24:15; Deuteronômio 30:19).

Promessas e ameaças

A Carta a Tiatira termina com uma série de grandes ameaças e grandes promessas. Jezabel tinha ultrapassado os limites da paciência divina. Se não se arrepender imediatamente será jogada em um leito de enfermidade, e seus amantes e seus filhos seguirão a mesma sorte. Isto demonstrará, a eles e a todos os outros, que o Cristo ressuscitado verdadeiramente “esquadrinha a mente e o coração”.

Esta frase foi tomada de Jeremias 11:20. Em Jeremias a prerrogativa de esquadrinhar os pensamentos mais íntimos do homem pertence a Deus. Mas no Apocalipse as prerrogativas de Deus, como vimos frequentemente, converteram-se em prerrogativas de Cristo.

Ao dizer que o Cristo ressuscitado esquadrinha “a mente e o coração” afirma-se que conhece os sentimentos e os pensamentos mais ocultos. Esta é uma idéia muito interessante. Quando começamos a estudar esta carta, dizíamos que para qualquer pessoa que viesse de fora a Igreja de Tiatira pareceria uma congregação cheia de vida e energia, fértil em toda classe de boas obras. Sem dúvida os que prosperavam em seus negócios por ter entrado em compromisso com o mundo eram muito generosos em suas ofertas.

Os que assistiam aos banquetes de comerciantes e de artesãos deviam, ao mesmo tempo, contribuir com somas apreciáveis de dinheiro aos pedidos em favor dos pobres. Pareciam cristãos verdadeiros. Jezabel deve ter tido o aspecto de uma mulher piedosa e de bom caráter. Deve ter sido capaz de falar de uma maneira atrativa. Sua personalidade deve ter sido agradável e conquistadora.

Mas Cristo pode ver mais além do disfarce exterior. Ele sabe se o arrependimento é autêntico ou não. Sabe se a fé é autêntica e verdadeira, se a entrega é total ou não. Talvez Jezabel tenha podido enganar aos homens, mas não pode enganar a Ele. 

Então, aos que forrem verdadeiramente fiéis é feita uma dupla promessa.

A primeira parte da promessa provém do Salmo 2:8-9: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro.” Na fé e no ensino do judaísmo este era um salmo messiânico, que descrevia o triunfo do Messias em seu Dia. É bem evidente que o salmista pensava primordialmente num Messias guerreiro que esmagaria os pagãos e estenderia o poder de Israel até os limites da Terra.

Mas há algo que devemos lembrar. Este salmo foi um dos textos inspiradores do movimento missionário para as igrejas. Muitos missionários pediram a Deus que se cumprisse neles e em seu ministério a promessa “Pede-me, e eu te darei as nações por herança.” O salmo parece ser uma promessa de conquistas militares, mas à luz de Cristo se converteu na promessa do Evangelho para todos os homens.

Estrela da manhã

A segunda parte da promessa fala da estrela da manhã. As palavras são muito belas, soam como poesia. Há algumas interpretações para essa frase, você pode vê-las em nossa matéria sobre quem é a Estrela da Manhã.

Mas a provável interpretação correta é a seguinte: O próprio Apocalipse chama Jesus Cristo de “Estrela da Manhã” (22:16). A promessa da estrela da manhã aos que forem fiéis não é nada menos que a promessa da possessão do próprio Cristo em pessoa. Se o cristão for fiel, quando sua vida nesta Terra termine, possuirá a Cristo, para não perdê-lo jamais.

Referências:

O NOVO TESTAMENTO Comentado por William Barclay

Equipe Redenção
A Equipe Redenção é formada por pastores, escritores, estudantes e entusiastas do Evangelho. Queremos apresentar o plano de redenção de Jesus Cristo a todo o mundo, através da internet e destes textos. Todos são convidados para os nossos encontros aos domingos às 19h na Rua Augusta 2283 - São Paulo, SP.