É comum acharmos que religião, filosofia e ciência não se misturam, nem se relacionam, mas não é verdade. A religião, ou melhor, o pensamento religioso, é de alguma forma o precursor do pensamento filosófico, que por sua vez deu origem ao pensamento científico. Ambos estão conectados pelas categorias que selecionam e organizam a realidade humana, são formas de selecionar aspectos do mundo para se viver bem.
Religião e Filosofia.
Para visualizarmos melhor o raciocínio precisamos remontar à Grécia antiga, no século VII a.C. É de se pensar que os filósofos gregos formaram contextos excepcionais no conjunto social que eles integravam, mas isso com certeza esvazia o fenômeno de sua historicidade. A filosofia nasceu em um contexto histórico de agrupamento e questionamento, porém imersa num quadro religioso e mitológico. Ao se perguntar sobre a forma e a composição do universo, o filósofo não está abandonando seu enquadramento religioso, pois age coerentemente dentro dele. Acredita-se que o primeiro a questionar sobre o elemento primordial tenha sido Tales de Mileto (624 – 548 a.C.), que pensava ser a água o princípio de tudo.
Com o tempo, a filosofia foi adquirindo entre os gregos uma forma autônoma, mas não completamente independente da Religião. O principal fator dessa autonomia foram os três movimentos clássicos, que encontram personagens diretos na história. São eles: Sócrates (469 – 399 a.C.), Platão (428 – 348 a.C) e Aristóteles (384 – 322 a.C.). Sócrates filosofou sobre a ética e como viver dignamente através do questionamento e da consciência de si mesmo. Suas frases mais famosas são: “uma vida não refletida não vale a pena ser vivida”, “conhece-te a ti mesmo” e “só sei que nada sei”.
Já Platão foi discípulo de Sócrates. Ele revolucionou ao escrever suas idéias, que sobreviveram até os dias de hoje em sua maior parte. Entre suas maiores contribuições está a teoria do mundo das ideias, na qual ele explica que existem dois mundos distintos: este, físico, e o da razão. Ele utilizou uma alegoria para explicar melhor o conceito: imagine que nós estejamos em uma caverna, presos, olhando para imagens que são projetadas na parede. Platão afirmou que as imagens que vemos são o que nós achamos que é real, mas são sombras projetadas por outras pessoas através de uma fogueira. O mundo fora da caverna, que só o filósofo consegue acessar, é o mundo das ideias, o verdadeiro mundo, onde não há ilusões.
O filósofo Platão, além de contribuir para o questionamento a respeito dos mitos sobre o mundo, foi uma importante base sobre a qual foi construído o pensamento cristão nos cinco primeiros séculos do cristianismo. A filosofia platônica influenciou profundamente os teóricos da Patrística, nome dado para a corrente teológica-filosófica cristã nos primeiros séculos, que tinha por expoentes grandes apologetas cristãos, também chamados de pais da Igreja. O maior desses expoentes foi Agostinho de Hipona (354 – 430), que se baseou no mundo das ideias de Platão, para explicar o conceito de Cidade de Deus, como uma analogia à Nova Jerusalém, a cidade na qual os cristãos irão habitar junto com Jesus Cristo após o julgamento final.
O mais brilhante discípulo de Platão foi Aristóteles, famoso por discordar de seu mestre em quase tudo. Aristóteles se engajou em múltiplas áreas do conhecimento, desde a política, lógica, ética, até a biologia. Foi o primeiro grande pensador a estabelecer uma divisão das grandes áreas do saber, e por muito tempo foi a autoridade máxima em diversos assuntos. Aristóteles defendeu que a democracia era a melhor forma de governo, embora não seja perfeita. Ele também chegou à conclusão que todo o universo necessitava de uma primeira causa para que tudo existisse, que chamou de Primeiro Motor.
A Matriz da existência
O Primeiro Motor foi um conceito elaborado pelo filósofo Aristóteles no século IV a.C. para poder explicar que tudo necessita de uma primeira causa para existir. Contudo, podemos afirmar que esse tipo de expressão já circulava entre os hebreus pelo menos seis séculos antes, dentro da esfera do pensamento religioso. Antes, vamos explicar o que é o Primeiro Motor.
Para o filósofo grego, todas as coisas possuem uma causa. Você foi causado por seus pais, eles pelos pais deles e assim sucessivamente. Os objetos igualmente possuem causas distintas. Como uma ferramenta, ou uma tecnologia atual, que foi criada para algum propósito específico. Ele pensava que nada podia simplesmente surgir do nada. Assim, ele criou dois conceitos: ato e potência. O primeiro representa a essência do ser no momento em que se observa, ou seja, como as coisas são agora. A potência é o que pode vir a ser. A semente de uma árvore tem a potência de ser uma árvore, mas não é ainda. Se pensarmos assim, podemos abstrair que todos os atos já foram potências em algum momento, e se regredirmos até o princípio chegaríamos a… nada?
Se o nada não produz nada, como pode ter originado tudo? Foi o que Aristóteles se perguntou. Em sua época, muitas pessoas simplesmente acreditavam que o universo havia surgido de um ser chamado caos, que deu origem aos titãs e depois aos deuses. Mas, para ele, isso não significava nada. A primeira causa precisa existir, e tem que ser necessariamente não causada, porque senão não seria a primeira. No entanto, o próprio universo é formado por coisas causáveis, logo a primeira causa deve ser o oposto das composições do universo. Algo eterno, espiritual, imutável, e infinito, que fosse ato puro, e não tivesse a potência de ser nada. Dessa forma, Aristóteles pensou que esse Primeiro Motor fosse a Matriz de toda a existência.
No entanto, essa é exatamente a maneira que os hebreus pensavam que o universo se originou. Mas, eles chamam o Primeiro Motor de Deus. De acordo com os hebreus, Deus é um ser imutável, infinito, espiritual e eterno, a única diferença é que ele também possui uma vontade, pois é um ser pessoal. Para ter dado origem ao mundo, a Matriz só pode ter tido um projeto, um pensamento. É assim que os teístas, incluindo os cristãos, pensam o universo. E é dessa forma que podemos dizer que o pensamento religioso é uma forma de interpretar o mundo.
Sagrado e profano
Se dissemos que o pensamento religioso organiza o mundo de uma forma específica, precisamos falar de suas duas principais categorias. Toda religião faz uma distinção, as vezes não tão clara e definida, entre o sagrado e o profano. A religião está alicerçada em três pilares: crenças, práticas e ensinamentos, mas estes estão orientados segundo as linhas de força do sagrado e da maneira de se conectar com ele. Por exemplo, para o budismo, o ser humano precisa se conectar com si mesmo e com a natureza. Já para os cristãos, as pessoas devem se conectar com Deus.
O sagrado é uma abstração, uma forma de pensar a utilidade da vida. Ele nos orienta, nas atitudes, nas ações, e em tudo que fazemos. Mesmo sendo abstração não significa que não exista fisicamente, mas estamos de um modo geral. Até as pessoas que pensam não estar se guiando pela dualidade sagrado/profano agem de acordo com alguma linha de marcação, podemos dizer que aquilo é sagrado para ela. Em outras palavras, todos agem de acordo com um norte, ao passo que julgam outras coisas, atitudes e ações como falsas, injustas e erradas. O sagrado é o que consideramos como bom, o profano é o ruim, que precisa ser afastado e condenado.
Dessa maneira, podemos afirmar que o sagrado para os teístas é Deus, o maior modelo a ser seguido. Especialmente, para os cristãos, Jesus Cristo é a síntese de tudo que devemos ser, em nossos pensamentos, relacionamentos, condutas, posicionamentos etc. Não é à toa, que o evangelista João chamou Jesus de Logos, que pode ser traduzido por Palavra ou Verbo, uma ação de Deus. Essa identificação também parte da filosofia grega, uma vez que os filósofos gregos buscavam saber o princípio das coisas. Enquanto eles achavam que o princípio estava em coisas materiais, João diz que o príncipio é o Verbo, a Palavra de Deus. Veja:
No princípio, era o Verbo. E o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. […] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
João 1:1 e 1:14
João está identificando Jesus com o Logos para afirmar que Ele é o princípio de todas as coias, a Matriz da existência. Se Jesus é o Logos, Ele também é o sagrado a ser seguido, exaltado e comunicado. Quando seguimos os passos de Jesus estamos agindo religiosamente. Não apenas porque estamos sendo guiados pela fé, mas porque Ele é o sagrado. Pensar religiosamente, então, define uma concepção de ordem do mundo, que necessariamente envolve a distinção entre sagrado e profano nas coisas e nos comportamentos.
Filosofia e Ciência
Como dissemos, a religião é uma forma de ordenar o mundo, assim é também a filosofia e a ciência. Mas há algumas diferenças. Enquanto as categorias do pensamento religioso se compõem basicamente pela distinção entre sagrado ou profano, a ciência procura fazer distinção entre verdades, hipóteses e mentiras. Como fizemos antes, precisamos apresentar o contexto histórico dessa integração.
A filosofia seguiu se desenvolvendo no decorrer dos séculos, e se firmou como a busca incessante pela verdade. Isto é, pensar filosoficamente é duvidar da ordem das coisas, estabelecer uma crítica ao senso comum e determinar um novo paradigma. É importante reconhecer que a filosofia em si nunca encontra a verdade, está sempre à sua procura. Cada filósofo acha uma verdade pra chamar de sua, mas o conjunto permanece recheado de inúmeras propostas para solucionar os problemas humanos, e cada uma serve para tempos e necessidades distintas.
Com o advento do cristianismo, muitos filósofos buscaram agrupar a fé cristã com o pensamento grego. Como foi o caso célebre de Agostinho de Hipona (354 – 430) que compartilhou da ideia de Platão da divisão dos mundos. Ele estabeleceu que este mundo, chamado de cidade dos homens, é uma cópia imperfeita do mundo divino, a cidade de Deus. Para Agostinho, a vida terrestre é passageira, e caminha em direção ao etéreo plano de Deus, que será viver em uma cidade celestial, sem erros, pecados, injustiças e sofrimentos.
Já Tomás de Aquino (1225 – 1274) se inspirou em Aristóteles para produzir suas obras filosóficas. Ele afirmou que o mundo real é uma mistura de física e metafísica, e que no futuro seremos renovados de corpo e alma para viver com Cristo. Aquino adaptou as ideias gregas para o cristianismo, e disseminou a concepção de que Deus é o Primeiro Motor, e que a fé e a razão possuem propriedades relacionadas e harmônicas entre si.
No século XVII, a filosofia deu um passo sem precedentes. Foi com os pensamentos racionalistas de Descartes, Leibniz e Espinoza, e empiristas de Roger Bacon, John Locke e David Hume, que a ciência começou a se compor. Os racionalistas contribuíram para pensar o conhecimento de forma duvidosa, para submeter questionamentos mesmo para as coisas mais óbvias. Enquanto que os empiristas desenvolveram métodos de análise de conhecimento, que seriam popularizados em todo o mundo, como métodos científicos.
Métodos científicos
Se afirmamos que a ciência moderna surgiu no século XVII, precisamos dizer qual é sua principal característica. Os processos científicos se sustentam na busca por dispositivos probatórios, que são formas de comprovar determinada situação, para se alcançar uma verdade. Diferente da filosofia, a ciência busca reproduzir um rigor metodológico para explicar o mundo.
A metodologia científica pode ser resumida pelos experimentos, observações, formulações de hipóteses, revisões e conclusões. Como por exemplo, verificar a velocidade de queda de um objeto. Galileu Galilei observou que dois objetos, independentemente de suas massas, sempre chegam ao chão no mesmo instante. Isso porque a aceleração que estão submetidos é a mesma, e hoje sabemos que a aceleração da gravidade é 9,8 m/s². No entanto, ele foi capaz de chegar a essa conclusão somente observando como os corpos se comportavam, e estabelecendo hipóteses, relações e chegando a um paradigma.
Mas, nem tudo é fácil de ser determinado pela ciência. Existem coisas que não podem simplesmente ser submetidas aos métodos científicos. Não dá para provar realmente muitas das coisas que tomamos por verdade. Na prática, isso quer dizer que precisamos duvidar até mesmo das considerações científicas, e ir atrás de outros experimentos. No entanto, é preciso dizer que cada esfera do pensamento só pode ser repensada dentro de si mesma. Ou seja, só podemos refutar a ciência com outra ciência, com uma teoria melhor. A teoria, por sua vez, não é uma hipótese, é um conjunto de argumentos e conceitos que servem para explicar um aspecto da realidade e pode ser tanto religiosa, quanto filosófica ou científica.
Formas legítimas de pensar
Todas as teorias científicas podem ser falseadas. Dizer que um paradigma foi estabelecido significa afirmar que a teoria resistiu a todas as provações que foi submetida, por isso é tomada como aceita pela comunidade. Em outras palavras, uma verdade científica é aquela consideração que se mantém sem nenhum abalo forte considerável, mas que está sujeito a revisões ao passo que as descobertas sempre serão infinitas e constantes. Porém, reconhecer a natureza falseável das ciências não significa exatamente dizer que devemos simplesmente duvidar delas, apenas que devemos buscar saber amplamente sobre o que elas dizem, quais são seus prós, contras e alternativas.
Reconhecer a importância das ciências é fundamental. Mas devemos saber, igualmente, que elas não podem resolver tudo. Por exemplo, se dissemos: “toda verdade é científica” como sabemos se isso é verdade? Ela foi submetida ao método científico? Óbvio que não. Então não é verdade. Existem coisas que estão além dos campos de atuação das ciências, porque não são apenas materiais e observáveis, como o amor, a ética e o próprio Deus. Ele está além do plano físico, por isso não pode ser provado, apenas sentido. Se o pensamento religioso é uma forma de interpretar o mundo, tenha certeza que é uma condição absolutamente legítima e aplicável para nossa realidade e experiências espirituais.
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