Antes mesmo de tratarmos do que seja a cultura do cancelamento e suas consequências nos relacionamentos pessoais e para toda a nossa sociedade, precisamos pensar sobre uma realidade social que está presente em todo mundo e que se apresenta num primeiro estágio como repulsa ao que é diferente ou àquele que vive de uma forma que pode ser considerada inaceitável. Imagine uma imensa bolha de convivência pacífica estourando e espalhando seus fragmentos por toda parte. Imagine que esta bolha esteja repleta de um conteúdo de ressentimento, rancor, aversão ao diferente, desejo de que minha maneira de ver o mundo seja imposta ao outro. Pois é, a bolha parece ter estourado e espalhado seu conteúdo de intolerância para o mundo todo.
Inicialmente, precisamos falar sobre outro fato que está presente em todo o mundo: o discurso do ódio. Este discurso não é um fato isolado que está acontecendo em alguma parte do meu país, num âmbito mais
restrito, pelo contrário, essa cultura do ódio, da discriminação e do preconceito para com quem é diferente não é uma realidade nova, ela é uma mentalidade que existe há décadas. Antes do discurso do ódio se
tornar tão presente na internet e tão explícito a ponto de assustar a sociedade do mundo todo, havia um diálogo que estava na superfície dos relacionamentos sociais que poderíamos descrever com duas expressões
estrangeiras laissez-faire ou let it be. A tradução desta expressões que são mentalidades de décadas atrás na França e Estados Unidos e diversos países era deixe estar – se isto está bem para você, então está tudo certo.
Se você acredita desta maneira e está feliz com isto então está tudo certo. Não precisa ser verdade para mim, se é verdade para você, então está tudo certo. Estas expressões pareciam conter uma tolerância (que diga-se de passagem não é necessariamente um ato de amor mas de suportar o que vejo e ouço) invejável, ou seria uma atitude politicamente correta para que fosse ostentada diante de milhares de pessoas que poderiam estar me observando?
Estas atitudes e pensamentos deram lugar à uma mentalidade muito diferente dessa primeira aparência de tolerância e de ausência de preconceito. Esta nova maneira de viver e de interagir com outros seres
humanos, não fica intimidada ou mesmo acanhada de manifestar-se através do racismo, da intolerância, e até do ódio para com tudo e para com todos os que são diferentes de sua estética sobre o mundo em que ela pretende viver. Essa manifestação religiosa, política e social agressiva e até cheia de ódio não é pontual, não é algo que acontece num único lugar no mundo.
Agora essa maneira rancorosa de agir contra quem pensa diferente, se manifesta de forma religiosa, política ou até contra quem tem opiniões sobre determinadas áreas da vida humana.
Para exemplificar o que acabo de dizer devo destacar algo que está acontecendo em nosso país. Por divergências de opiniões acerca de visões políticas-partidárias pessoas de uma mesma família deixaram de conviver. Mudaram-se, deixaram de se ver e preferiram não mais ter convívio por divergirem politicamente do que seja o que eles pensam ser certo e errado. A divergência se tornou mais forte do que os laços familiares. Existem casos em que pais e filhos deixaram de se falar após estes confrontos que se referem a visão política e social sobre o mundo.
Desta maneira, o relacionamento do indivíduo com a sociedade voltou a um tempo de escuridão – dependendo da opinião que outro individuo tem sobre religião, política ou outro assunto que uma pessoa acha fundamental, a convivência com esta pessoa não é mais tolerada. Para muitos se estabeleceu uma ideia de que eu não posso conviver com pessoas que pensam diferente de mim na escola, na universidade, no trabalho ou em qualquer círculo inclusive familiar e acima de tudo nas mídias sociais. Esta maneira de viver parece indicar que aqueles que pensam assim estão afirmando: eu sou uma pessoa íntegra com as minhas ideias, de forma que quem não pensa como eu, tem que ser abandonado isolado, ser jogado fora em algum lugar de esquecimento que é o que ele merece.
Ainda existe um fato que preciso salientar que são as pessoas que tem atitudes ou que são acusadas de atitudes que atentam contra o senso comum do que é correto, ou mesmo são acusadas de algum crime ou
contravenção que podem ter cometido. Este é um assunto muito sério e relevante porque é muito comum que as mídias noticiam um fato e quase que imediatamente juntamente com as acusações de um atitude errada, um possível crime ou contravenção, inicia-se um julgamento público.
Infelizmente isto é muito comum no Brasil. Assim que uma pessoa é acusada de algo, ela já é convidada a dar a sua versão dos fatos, aquele tema aparece nos jornais televisivos e na internet. É exibida qual é a acusação que ela recebeu ou pode ser que algumas destas acusações apareçam nas mídias sociais ou no próprio ambiente da internet que a pessoa está sendo acusada, mas em muitos casos sem um direito de defesa mas esse direito de defesa direito de defesa amplo como assim julgamento, ou seja, a pessoa passa a ser julgada, as pessoas se tornam juízes baseando seu veredito sobre o que souberam através da internet e já estão emitindo suas opiniões.
Evidentemente este não é um julgamento! Um julgamento exige um tribunal constituído que receba todas as acusações e todos os argumentos e uma defesa com tempo para se expressar, necessita de informações minuciosas dos fatos e tempo para que a verdade seja estabelecida por quem deverá julgar se alguém é inocente ou culpado. O que está se processando nestes casos é um linchamento público: eu bato numa pessoa, eu ajo como se quisesse matá-la. Estas atitudes destroem vidas. Eu acabo com uma pessoa através das ações de ódio que eu tomo publicamente. As marcas dos linchamentos públicos poderão durar a vida inteira. Existem histórias de pessoas sofreram fisicamente. Algumas foram presas e até mortas porque foram confundidas com uma pessoa cujo crime foi ser parecida com alguém que era procurado pela polícia por algum crime.
Existem situações de indivíduos que foram condenados sem que fossem culpados por nada do que foram acusados sendo libertos muitos anos depois de cumprirem penas injustas. Agora imagine um julgamento
instantâneo pelas mídias sociais. Ele pode ser considerado um julgamento justo? O direito romano que é da idade antiga preconizava que todo indivíduo é inocente até que provem o contrário. A lógica da internet em
nossos dias tem sido que toda pessoa que parece culpada por informações recebidas de forma anônima é culpado até que provem o contrário.
Como uma das modalidades destes julgamentos instantâneos eu cito a cultura do cancelamento. Alguém é acusado de ter praticado algo que é reprovável e em minutos ele é cancelado por pessoas que ele considerava
serem seus amigos ainda que virtuais. Esta pessoa não tem direito à defesa. Ele tenta usar o tempo do naufrágio de sua reputação para dirigir suas últimas palavras, mas talvez não haja público e muito menos amigos que acompanhem o desfecho de sua ruína. Quero alertar ao leitor desta matéria que você pode ser o alvo de uma cultura de cancelamento se você aceitar fazer parte destes linchamentos públicos também poderá aguardar que as pessoas lancem pedras em você e o isolem do convívio com os outros.
O que fazer diante de um cancelamento?
Quando surge o cancelamento de uma pessoa publicamente o estrago já está feito. Como lidar com uma tragédia pessoal como esta? Existiria um caminho para o retorno? Eu afirmo que o caminho do retorno, a volta dos relacionamentos é um caminho muito difícil e doloroso. Entretanto, precisamos aprender com os excessos, com as fake news e com a intolerância que anda se espalhando pelo mundo. Eu preciso olhar para o universo e ficar encantado com a beleza de sua diversidade: praias, montanhas, desertos, rios, mares, florestas e uma biodiversidade enorme.
Com estas palavras eu não estou afirmando que alguém que fez algo de errado, alguém que cometeu um crime, alguém que está na prática de atitudes que devemos reprovar que esta pessoa não precisa ser tratada de forma justa e ir a um julgamento justo. Pelo contrário, todos devemos ser responsáveis por nossos atos, sem que, com isto eu crie uma sociedade de ódio, vingança e que não admita o caminho do retorno.
O caminho do retorno é ensinado por Jesus quando conta a história de um pai que foi abandonado pelo filho – que recebeu a sua herança e partiu para uma terra distante para não mais conviver com sua família.
Vale destacar que na antiguidade uma herança só podia ser repartida quando o dono das terras era morto. Mas o pai do filho mais jovem da história de Jesus em Lucas 15.11-32 está vivo. Uma atitude como a deste filho mais novo deveria ser respondida com punição. Seu pedido jamais seria atendido e o filho seria afastado para sempre do convívio de sua família por uma decisão de seu pai. Na história que Jesus contou o pai é o próprio Deus e os filhos rebeldes que o desprezam muitas vezes podemos ser cada um de nós. Observe então qual é a atitude do pai e aprenda um pouco sobre como retornos impossíveis podem se dar pela força do amor que reconstrói tudo que está destruído:
- O pai reparte a herança. Ele não odeia seu filho. Ele não está feliz com a escolha deste filho que resolveu morrer para sua família. Mas ele age com um amor que não se ofende com a incompreensão e o desprezo.
Ele demonstra bondade. Bondade é uma das mais maravilhosas qualidades divinas que são compartilhadas com os homens que desejam viver como filhos de Deus. - O pai espera o retorno de seu filho na porteira da fazenda. Quantas vezes por dia? Quantos dias por ano? O fato é quando seu filho retorna seu pai o está esperando. Precisamos manter as nossas portas abertas
para ouvir, para compreender, para aceitar as transformações que são a manifestação de que Deus continua atuante em nosso mundo. - O filho só retorna porque ele se arrepende depois de gastar tudo que recebeu e ter se tornado uma pessoa numa situação de miséria. Arrependimento nas palavras de Jesus são uma mudança de atitude. Ele
reconhece que atentou contra Deus, contra seu pai e contra ele mesmo. - O retorno precisa ser festejado! Quando alguém que errou se arrepende Deus festeja sua volta. Ele nos trata assim. Ele não deseja nos punir como o propósito de sua existência, Ele almeja nosso arrependimento.
Mudança de atitude precisa ser festejada.
Por fim se queremos viver numa cidade de Deus o discurso do perdão, do amor, da mudança de atitude, da compreensão e da humanidade precisam retornar ao convívio das mídias sociais, mas muito mais eu preciso olhar para o mundo através do amor que Deus nutre por mim. Ele não me cancela, nunca desiste de mim.
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Texto por Eli Moreira.
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