A partir da observação de animes produzidos nos últimos 20 anos, é possível adquirir a certeza de que algumas experiências e sentimentos são melhor expressados através de animações do que em filmes com atores humanos. Algo que pareceria demasiado fingido e caricatural em atores, se encaixa perfeitamente no mundo dos animes. Questões humanas que só poderiam ser expressas dentro de certos limites, se manifestam em animes com uma leveza cotidiana extremamente bela ou com um peso dramático triplicado pelo fantástico que só pode ser produzido pelas mãos de um artista. E esse é o caso de A voz do Silêncio.
A história é protagonizada por um estudante colegial chamado Shoya Ishida que pretendia se suicidar pela culpa que carregava há anos por erros que cometeu quando criança. Somo levados ao seu passado para compreender os motivos que o levaram até aquela situação e nos deparamos com a chegada de uma aluna nova em sua sala, Shouko Nishimiya. A nova aluna é portadora de deficiência auditiva, o que causa o estranhamento das crianças da sala e se torna rapidamente motivo de chacota e perseguição.
Assistimos então uma série de atitudes violentas e cruéis protagonizadas pelas crianças contra Shouko, como piadas, empurrões, puxões em seu aparelho auditivo (o que eventualmente causa um sangramento eu seu ouvido) e danos em seu material escolar. Ishida, como o “palhaço da turma”, acaba por ser o principal ator dessas violências com o aval das outras crianças que riam e faziam piadas. Vemos que ele desejava a aprovação dos outros e se incomodava com aceitação passiva das violências por parte de Shouko, esperando que ela reagisse com raiva para ele, o que provavelmente seria o retorno satisfatório de suas “brincadeiras”.
Os danos causados a diversos aparelhos auditivos de Shouko acabam por mobilizar sua família a fazer uma reclamação na coordenação da escola. A seriedade da denúncia leva o diretor e o professor responsável pela sala a abrirem um inquérito em sala de aula, e nesse momento o mundo vira de cabeça para baixo para Ishida. Ao serem questionados, os alunos e colegas negaram qualquer envolvimento com os episódios de violência, chegando até mesmo a afirmarem que tentaram impedir o palhaço da sala de praticar bullying com a aluna nova. Ishida se torna o bode expiatório, recebe o estigma perpétuo de perseguidor, passa a sofrer as mesmas violências que dirigia contra Shouko com a justificativa de que ele é uma pessoa má, e sua mãe acaba tendo que pedir desculpas pelos erros do filho e pagar um novo aparelho auditivo.
Retornamos então para o presente, anos depois, e vemos que o estigma sobre Ishida permanece intacto, com os alunos o excluindo de todas as atividades por supostamente ser o responsável único por um bullying hediondo do passado. Quando nos fazem ver o mundo pelos olhos de Ishida, as visões são todas focadas nos pés das pessoas em torno dele, ou então os rostos são cobertos com um X, para simbolizar e demonstrar a sensação de estranhamento e não pertencimento do personagem. Ele aceita o estigma como um fato e internaliza de tal maneira que não se considera digno de amizade alguma, muito menos de ser perdoado. Por isso mesmo havia decidido se suicidar após quitar a dívida dos aparelhos auditivos com sua mãe. Entretanto, algo dentro dele, um desejo de viver e se redimir, o impede de pular da ponte e faz com que procure por Shouko para pelo menos ser seu colega e compensar os sofrimentos que lhe causou no passado.
A partir desse momento acompanhamos a jornada por redenção de alguém que de fato cometeu erros seríssimos e que viu a roda da fortuna virando contra si mesmo num choque de realidade que possibilitou uma mudança genuína e positiva em seu interior, mas que permaneceu aos olhos do mundo como um eterno infrator. Ao pensar sobre isso, me veio à mente um trecho de Actuelles Écrits Politiques, escrito por Albert Camus, colocado nas primeiras páginas de um livro de Pascal Bruckner intitulado A tirania da penitência, em que o autor diz:
Estamos em um tempo em que os homens, movidos por ideologias medíocres e ferozes, se habituaram a ter vergonha de tudo. Vergonha de si mesmos, vergonha de ser felizes, de amar, de criar […]. É preciso, pois, se sentir culpado. Eis-nos arrastados ao confessionários laico, o pior de todos.
De fato, apesar da secularização do mundo (ou graças a ela), somos avessos a possibilidade de arrependimento e mudança das pessoas. A internet é inundada por justiceiros que desejam investigar e punir perpetuamente cada um dos erros cometidos por quem quer que seja, e isso é revelador da nossa própria hipocrisia e conivência. Como aqueles que foram passivos e riram enquanto Shouko sofria violência, mas que na hora da justiça desejaram o massacre de um bode expiatório para encobrir as próprias falhas que possibilitaram a perpetuação do mal.
As semelhanças entre a trama por redenção de A Voz do Silêncio e os conflitos entre Jean Valjean e Javert, em Os Miseráveis, são mais do que evidentes e podem auxiliar a visualização, a partir de um núcleo narrativo semelhante, das potencialidades de um anime. Jean Valjean cumpriu uma dura pena por anos e, quando liberto, desejavam que carregasse consigo um estigma perpétuo que o impedia de ser aceito por seus iguais. Encontra redenção e perdão pelas mãos de um padre, atitude que o motiva a ter uma nova vida e se tornar um homem honrado e bom com seus semelhantes. Mas o abandono do estigma (um documento que confirmava seu passado) por escolha própria leva a justiça secular encabeçada por Javert a persegui-lo implacavelmente por anos a fio. Quando Javert se vê poupado pela gentileza do homem que supunha ser um eterno criminoso, seu próprio senso de justiça distorcido o leva a cometer suicídio.
Tais apontamentos dialogam explicitamente com duas realidades fundamentais para a moralidade humana, quais sejam: o arrependimento e o perdão. Por certo, tanto o livro Os miseráveis quanto a animação A Voz do silêncio promovem reflexões profundas sobre tais elementos éticos. Na realidade, podemos afirmar que os temas supracitados refletem a própria tensão estruturante das obras em análise. Afinal, o que define o amadurecimento dos personagens? O que reflete o verdadeiro arrependimento?
A imprescindibilidade do arrependimento se encontra, especialmente, na afirmação segundo a qual os erros não definem a individualidade humana e, por conseguinte, não são instâncias determinantes do caráter moral, o qual apresenta uma conexão intrínseca com os esforços de correção das próprias falhas, ou melhor, com a genuína formação da personalidade mediante o empreendimento das faculdades pessoais na prática das virtudes.
Desse modo, atesta São João Bosco: “ser bom não consiste em não cometer falhas, mas na vontade de corrigir-se”. Tal é a natureza genuína do arrependimento. Não se resume a um mero remorso, mas possui uma dimensão positiva, ou seja, propriamente ativa. Trata-se do reconhecimento do mal cometido e na disposição genuína de não mais cometê-lo. Ademais, apenas o arrependimento possui efeito libertador. Em vista disso, afirma Honoré de Balzac: “O remorso é uma impotência. Ele voltará a cometer o mesmo pecado. Apenas o arrependimento é uma força que põe termo a tudo”.
A dualidade remorso x arrependimento também faz parte da tensão estruturante da animação, pois há um processo de arrependimento na trajetória de Ishida. Durante suas tentativas de aproximação com Nishimiya, ainda o vemos tomado pelo remorso, por um abatimento e inquietação paralisante. O perdão autêntico advém no final da trama quando Shoya toma consciência da complexidade do relacionamento e, a despeito disso, assume um comprometimento de se abrir ao mundo da vida, das relações sociais, com suas instabilidades, belezas, sofrimentos e alegrias. Assumir relacionamentos sociais tipifica um ato de coragem.
Com base no exposto, podemos vislumbrar três lições inexoráveis, a saber: sem o arrependimento não há perdão dos erros; sem arrependimento a própria felicidade se demostra inalcançável e, por fim, o arrependimento não se identifica com o remorso. Não obstante, é preciso esclarecer melhor os elementos necessários para uma postura de amadurecimento e superação das próprias falhas. O primeiro traço constitutivo reside no autoconhecimento, afinal “somente as pessoas que sabem que carregam fardos podem ser libertas deles” (Edward Welch). Destarte, é indispensável uma análise introspectiva para adquirir um esclarecimento pleno das próprias limitações.
Tamanha é a importância do “conhecimento de si” que Agostinho de Hipona, em sua obra Confissões, atribuiu um valor notável a interioridade como caminho para a derradeira Verdade, operando uma espécie de mudança no caminho platônico do sensível ao suprassensível. Sob essa perspectiva, constata Johannes Brachtendorf: “Em Agostinho, há também a ideia de que o trajeto de subida não leva diretamente dos objetos exteriores ao divino, mas realiza uma virada para o interior do espírito (…) o espírito do homem representa uma etapa intermediária nesse trajeto que surge o esquema trimembre: de cima para dentro para cima”.
A apreensão da verdade, especialmente da verdade sobre nós mesmos, pressupõe tal conhecimento. Ora, mas a análise introspectiva não representa propriamente um fim, visto que deve operar uma “transformação de si”. Eis a verdadeira humildade: Do conhecimento de nós mesmos, partimos para o âmbito da concretude. Em Os miseráveis, Jean Valjean não mede esforços na promoção do bem público. Auxilia os mais necessitados, demonstra compaixão aos trabalhadores, adotou a criança de uma mulher à beira da morte para criar como filha e nunca se cansava de promover doações. Por sua vez, Shoya Ishida, apesar de suas fragilidades, demonstrava uma determinação latente em remediar o mal que praticou, especialmente, ao tentar se redimir com Nishimiya. Afinal, “ninguém cura a si próprio ferindo o outro” (Ambrósio de Milão).
Enfim, autoconhecimento, humildade e o empreendimento de ações virtuosas são os traços do arrependimento verdadeiro. Aliás, há um fato interessante nas duas obras: tanto Valjean quanto Ishida alcançam a redenção por meio do amor de outras pessoas. No caso do primeiro, podemos destacar o padre Monsenhor Benvindo, que o acolheu de forma generosa, sem julgamentos. Em relação a Shoya Ishida, ele foi capaz de superar seu bloqueio social e se livrar do fardo que carregava não somente pelo relacionamento que nutriu com Nishimiya, como também pela amizade que desenvolveu com outras pessoas. Por certo, a utilidade das conexões sociais é um dos focos da animação.
Conhecer e ser conhecido- gostamos de relacionamentos humanos por natureza, e esses vínculos são moldados ao longo tempo, através de interações e perguntas habituais que aos poucos solicitam mais e mais. Tais conexões são a base para a ajuda mútua, e são úteis em si mesmas, uma vez que são expressões de amor (Edward Welch).
Nesse sentido, outra realidade ética ganha destaque, a saber: o perdão. Se o arrependimento encontra respaldos na afirmação segundo a qual os erros não definem a individualidade humana, o perdão encontra seus fundamentos na assertiva segundo a qual não se deve responder ao mal com o mal. Primeiramente, porque o bem pressupõe a caridade e a caridade exige desejar o bem do próximo. Se de fato consideramos o amor indispensável para a felicidade, somos obrigados, necessariamente, a reiterar a indispensabilidade do perdão, pois o perdão é um ato de amor. Não se trata de uma negação da justiça. Se de fato houve a prática de um delito, quem o praticou deve sofrer as sanções legais. Não obstante, o que está em jogo é uma dimensão íntima, uma realidade intravolitiva, mais propriamente à liberdade interior. O perdão serve também para si mesmo, pois é preciso amar a si próprio, visto que se deve desejar para si a posse do Bem.
Victor Sales Pinheiro esclarece:
Por ser uma forma de amor, esse é o ato supremo. É o ato supremo não da altivez, do esnobe que não se sente afetado por nada, como se ele tivesse em outro plano. Porque aquele que sofre é claro que está machucado, que tem o coração ferido. Mas a questão é como reagir a esse sofrimento. Refiro-me à liberdade espiritual, interior, de estar conciliado com os outros mesmo que eles não estejam conciliados conosco. Esse é o ponto. Precisamos interromper o mal com o bem (…) Cada um de nós precisa lutar contra o mal em si. Perdoar é uma forma suprema de amar.
Se definirmos a virtude como “imitação do Bem supremo”, assim como fez Agostinho de Hipona, certamente reconheceremos a eminência do perdão, visto que a atitude de responder uma injustiça com o rancor representa, em última instância, uma imitação do próprio mal. Marco Aurélio afirmava: “A melhor forma de se defender de pessoas hostis é não se tonar semelhante a elas”. Sob essa perspectiva, reiterava o pregador puritano Thomas Watson: “Pagar o mal com o mal é brutal; pagar o bem com o mal é demoníaco; pagar o mal com o bem é o verdadeiro amor”.
Por certo, foi o perdão o responsável pelo aperfeiçoamento humanístico dos personagens em análise. É possível estabelecer aqui um paralelo com a análise de Chesterton sobre o livro “A Bela e a fera”. “Chesterton diz que temos de amar os que não são amáveis porque o amor os fará amáveis: eles aprendem a amar ao serem amados. Eu amo não só quem já me ama, mas sobretudo quem ainda não me ama. O amor dá sempre o primeiro passo. Ele é ativo, não passivo e reativo” (Victor Sales Pinheiro). A humanização se opera pelas virtudes. Foi justamente o que ocorreu com Jean Valjean.
Apesar da centralidade do perdão na vida moral, é nítida a desvalorização crescente de tal expressão de amor. A cultura do cancelamento, as tendências dos movimentos sociais na identificação de bodes expiatórios para determinados males sociais, a objetificação do mal em determinadas pessoas ou ideias e a incapacidade de construção de uma esfera pública refletem, em última instância, uma carência na prática do perdão, privação que encontra suas raízes numa indevida compreensão do próprio amor. Falta ao homem pós-moderno a profundidade do entendimento do verdadeiro amor, confundido na contemporaneidade como licenciosidade, como mera liberdade negativa, como libertinagem ou, até mesmo, como puro individualismo. O crítico literário Terry Eagleton diz algo semelhante, mas se refere diretamente ao mal. Para ele, o indivíduo pós-moderno carece de uma sagacidade, ou melhor, de uma autenticidade para capturar a dimensão do mal.
No geral, as culturas pós-modernas, apesar do fascínio por demônios e vampiros, pouco tiveram a dizer a respeito do mal. Talvez seja porque falte ao homem ou à mulher pós-moderna- impassível, provisório, descontraído e deslocado- a profundeza que a verdadeira destrutividade exige. Para o pós-modernismo, não há nada a ser redimido.
Certamente, o mesmo vale para o amor. Ora, se os indivíduos desconhecem a profundidade do mal, como podem conhecer a profundidade do Bem? Até mesmo Santo Agostinho, fiel opositor do dualismo maniqueísta, constatava que a função da graça, que favorecia a libertação da vontade da coerção para o mal, é concebida somente em função dos males para os quais ela é o remédio. Identificaremos aqui o Bem como a plenitude do amor. A profundidade da concepção do amor exige uma abordagem a partir da totalidade das virtudes. Somente uma compreensão virtuosa (até mesmo, deontológica) do amor pode favorecer ao homem a prática do perdão e uma vivência integral da convivência cívica.
Por fim, pode-se afirmar que a animação A Voz do silêncio apresenta reflexões acerca de inúmeros temas valiosíssimos, como o bullying, as dificuldades das pessoas com deficiência auditiva na convivência escolar, a inclusão social, a alteridade, a dificuldade de aceitação do diferente e a instabilidade dos relacionamentos humanos. Não obstante, o eixo condutor da obra consiste justamente na temática da redenção, mais especificamente no arrependimento como meio fundamental para a formação da pessoa.
Todo o encadeamento do enredo conduz inevitavelmente a uma profunda análise sobre perdão, arrependimento e redenção. Quando criança, em razão da dificuldade de aceitação do diferente, Ishida, ao lado de seus colegas, praticava bullying contra Nishimiya. Posteriormente, após sérias denúncias, ele é encarado pelos seus amigos de sala como um grande “bode expiatório”, a encarnação do mal que afligia a garota. Com isso, foi alvo de uma “cultura do cancelamento”. Afinal, é mais fácil culpar alguém do que se responsabilizar pelo mal cometido.
Com o tempo, adquiriu uma fobia social e se viu acorrentado num medo paralisante, num remorso, um isolamento, que o impedia de uma abertura genuína ao mundo e ao exercício da intersubjetividade. Todavia, somente o arrependimento genuíno e o perdão possibilitaram ao personagem uma redenção e a integração na esfera da intersubjetividade dialógica. Todas as outras mensagens de exortação presentes na obra, como a amizade, a dimensão social do ético, a abertura ao diálogo, a compreensão da individualidade humana, o apreços às diferenças, corroboram para o enaltecimento do processo de arrependimento.
Por Leonardo Delatorre Leite e Davi Schelotag de Moraes
Referências:
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 2006.
BEAUMONT, Madame de. A bela e a fera. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Tradução por Milton Camargo Mota. 3. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2020.
BRUCKNER, Pascal. A Tirania da Penitência. Tradução por Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Bertrand, 2008
CHESTERTON, Gilbert Keith. “A educação pelos contos de fada”. In: The Chesterton Review. Edição especial em português, vol. I, n.1, 2009.
EAGLETON, Terry. Sobre o Mal. Tradução Fernando Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2022.
HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
OIMA, Yoshitoki. A Voz do Silêncio (Volumes I-IV). São Paulo: NewPOP Editora, 2022.
PINHEIRO, Victor Sales. Virtudes no cotidiano. Campinas, SP: Editora Auster, 2022.
WELCH, Edward. Lado a Lado. Traduzido por Letícia Scotuzzi. São Paulo: Cultura Cristã, 2017.
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