Declaração Universal dos Direitos Humanos: uma carta fundamentada pelos ensinamentos de Cristo.

Os Direitos Humanos são conceitos novos na história da humanidade. Frequentemente vemos muita confusão sobre o que eles realmente representam e quais são seus objetivos. Comentamos um pouco sobre o principal documento do mundo que assegura direitos fundamentais para a existência social humana.

Um passo sem precedentes

Em setembro de 1945, a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim. Os horrores e as brutalidades cometidas pelos regimes totalitários começaram a ser revelados para o mundo, deixando as demais nações e sociedades profundamente impactadas. Entre 60 e 80 milhões de pessoas foram mortas na Guerra. Destas, quase 6 milhões foram judeus, exterminados apenas por conta de suas crenças e origens étnicas. O Holocausto, extermínio em massa dos judeus pelos nazistas, se mostrou uma verdadeira tragédia, entre as maiores atrocidades cometidas pela humanidade.

Após o término da Guerra e da vitória esmagadora dos Aliados, os países vencedores passaram a elaborar um projeto para impedir que outro conflito devastador como aquele se repetisse. Dessa forma, em 24 de outubro de 1945 foi criada a Organização das Nações Unidas, com 51 estados membros-fundadores, dos quais o Brasil fazia parte. Hoje, a ONU conta com 193 membros e sua sede está localizada em Nova York, em um distrito independente e extraterritorial. Na época de sua fundação, o maior desafio era encontrar uma forma de cultivar uma nova ordem mundial, que pudesse prezar pela paz e pela harmonia entre os seres humanos.

Assim, a ONU optou por desenvolver uma carta à humanidade, que apreciasse garantias fundamentais dos indivíduos. Foi entendido que os estados eram os grandes responsáveis pelas opressões e barbáries das guerras mundiais, com as pessoas de seus países estando vulneráveis às decisões governamentais e institucionais. Por isso, os projetistas focaram em incentivar a proteção dos direitos individuais, que assegurassem a vida e a dignidade humana em primeiro lugar.

À vista disso, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas deu um passo sem precedentes, ratificando a Carta esboçada principalmente por John Peters Humphrey e Eleanor Roosevelt. Era então publicada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que instituia a vida, a dignidade e a liberdade como princípios fundamentais e absolutos da existência humana pela primeira vez em toda a história. Portanto, os direitos ali assegurados valeriam para todos, sem distinção de raça, cor, gênero, credo, etnia ou nacionalidade.

Milhões de pessoas foram levadas para campos de concentração e de extermínio pelos nazistas.
Milhões de pessoas foram levadas para campos de concentração e de extermínio pelos nazistas.

Pactos internacionais influenciados pela Carta

Os signatários da Carta se comprometiam a tomar medidas contínuas para garantir o cumprimento dos direitos humanos. No entanto, a Declaração não exige a obrigação legal dos países a seguir suas postulações, o que gerou muitas críticas por parte de muitos defensores dos direitos humanos. Mesmo assim, a DUDH, como é conhecida, foi capaz de influenciar a elaboração das cartas constituicionais de diversos países e de fundamentar alguns tratados internacionais. Além de ser profundamente citada por acadêmicos, advogados e cortes constitucionais ao redor do mundo.

Os dois tratados com força legal mais conhecidos são: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ambos foram adotados em 1966, mas só entraram em vigor dez anos depois, quando atingiram 35 membros, o número mínimo de adesões.

Eles reafirmam o direito dos povos à autodeterminação na definição de seus estatutos políticos, econômicos e culturais; bem como suas disposições autônomas de riquezas e recursos naturais. E ressaltam o direito à vida, igualdade, liberdade; proibição da tortura e a isonomia jurídica. Hoje contam com 160 membros. Contudo, na prática, ainda há muita dificuldade para mapear o descumprimento das garantias universais. Muitas pessoas tem recorrido aos tribunais internacionais e outras instituições para denunciar os abusos estatais.

Tensões e pluralidades na elaboração da Carta

Conversamos com a historiadora Renata Meirelles, doutora pela USP, sobre o contexto de formulação da Carta. Afirmou:

É preciso observar as tensões presentes no desenrolar da Segunda Guerra Mundial. Havia a percepção de que as doutrinas de superioridade racial resultaram na ascensão de figuras como Hitler e Mussolini. Uma nova ordem mundial e um sistema permanente de segurança internacional deveriam ser pensados de modo a evitar as guerras. A promoção dos direitos humanos foi vista como essencial para a promoção da paz mundial.

Meirelles pontuou que os Estados Unidos já haviam entrado na Guerra com o discurso de promover a paz, a liberdade e o respeito à dignidade humana. Na narrativa do presidente Franklin Roosevelt, não era apenas uma questão de intesse nacional e da vida dos norte-americanos, mas de toda humanidade, uma vez que o nazifascismo estava ameaçando a segurança global. Em 1945, os estadunidenses sediaram a Conferência de São Francisco, e apresentaram ao mundo a necessidade de criar a ONU e de uma agenda anti-totalitária.

Ainda afirmou que uma Comissão de Direitos Humanos, criada para a redação da Carta, trabalhou ao longo de dois anos na elaboração do documento. Eleanor Roosevelt esteve à frente da Comissão e foi constantemente orientada e guiada por membros do Departamento de Estado americano. Perguntada sobre os valores cristãos defendidos pela Declaração, respondeu:

A DUDH foi elaborada com a participação de um conjunto de representantes de diferentes países, culturas, crenças e visões sobre a religião. O Documento no artigo 16 assegura o direito ao casamento e afirma que a “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade”. Figuras proeminentes no cenário internacional e intelectuais cristãos desempenharam um papel central na discussão dos direitos humanos.

Disse que nos anos 1940 um movimento cristão transnacional de promoção dos direitos humanos experimentou uma onda de sucesso, quando, em 1948, foi criado o Conselho Mundial de Igrejas em uma conferência em Amsterdã que contou com a presença de John Foster Dulles, que invocava os valores do cristianismo. Dulles defendia os direitos humanos reconhecendo que eles deviam ser encarados como uma missão moral cristã. Esteve presente em momentos importantes da elaboração dos direitos humanos no plano mundial, incentivando a defesa dos valores cristãos.

Por último, finalizou dizendo:

Jacques Maritain, filósofo católico francês, foi uma das figuras mais proeminentes na promoção dos direitos humanos como valor religioso. Líder de um grupo de católicos franceses conservadores, Maritain buscou dissociar a herança dos direitos humanos na França do pensamento de Rousseau. Para ele, as leis naturais do catolicismo ofereciam o melhor enquadramento para os direitos humanos. Em 1942, ele considerou a devoção aos direitos da pessoa humana como o mais significativo avanço dos tempos modernos, mas alertou para os riscos de se demandar direitos humanos e dignidade sem invocar Deus. Graças às ideias de Maritain, muitos intelectuais católicos se apropriaram da linguagem dos direitos humanos, levando-a para o interior da comunidade cristã.

Uma carta cristã

Os direitos naturais e individuais são conceitos recentes na história humana, durante milênios tratou-se as pessoas como separadas naturalmente por raças, sexo e grupos distintos. Dominantes e dominados, essa pode ser a expressão que resume os conflitos sociais da nossa história. Porém, desde a Revolução Francesa (1789-1799) as coisas estão se alterando.

Foi na França, no final do século XVIII, que o debate em torno dos princípios naturais, inerentes ao ser humano, começou a ser discutido como um debate político. Os revolucionários chegaram a publicar sua própria carta, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Como se pode perceber, a carta, entretanto, não rompia com divisão entre gênero, considerando ainda as mulheres como inferiores aos homens, e só era válida para os franceses.

Foram necessários 159 anos para que a humanidade finalmente entendesse que era preciso uma consideração ampla, geral e irrestrita que suplantasse a desigualdade entre todos. No entanto, essas mesmas considerações já eram a base do pensamento de Jesus Cristo há dois mil anos. Podemos afirmar não apenas isso, mas também que a Carta da ONU foi essencialmente baseada nos princípios da Ética Cristã.

Se as ideias nazifascistas foram as grandes responsáveis pela tragédia humanitária da Segunda Guerra, era preciso se amparar em ideias opostas e concernentes à solidariedade universal. Nesse aspecto, não apenas o Conselho Mundial de Igrejas foi uma das grandes organizações que atuaram nos movimentos de influência da DUDH, bem como os próprios idealizadores se basearam no cristianismo para seu esboço.

Jesus pregou sobre igualdade, amor, humildade e perdão.
Jesus pregou sobre igualdade, amor, humildade e perdão.

O movimento igualitário de Cristo

O cristianismo foi nas suas origens um movimento que rompeu com os padrões do mundo antigo. Jesus de Nazaré iniciou uma verdadeira revolução ao defender a solidariedade e a igualdade entre os humanos. Para ele, o mandamento mais importante era o amor, ação que envolve necessariamente a prática do bem e a reciprocidade do afeto e da gratidão.

Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Esse é o maior mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos depedem toda a Lei e os Profetas.

Mateus 22:37-40

O amor é o ponto central do cristianismo. Amor que deve ser dado a Deus e ao próximo, ou seja, todos os seres humanos. O Evangelho de Jesus reiteradamente se colocou contra ao amor exclusivo, aquele oferecido somente aos que nos amam.

Ouviste o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai seu inimigos e orai pelos que vos perseguem. […] Com efeito, se amais apenas aos que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmãos, que fazei de mais? Não fazem os gentios a mesma coisa?

Mateus 5:43-44;46-47

Até os cobradores de impostos amam aqueles que os amam. Hoje, isso quer dizer: até mesmo os ladrões e corruptos amam os que lhe dão amor. Se não amarmos todas as pessoas, em que seremos diferentes deles? Que recompensa teremos no Reino de Deus? Dessa forma, podemos afirmar que Jesus instituiu o amor universal, a reciprocidade coletiva, ainda no primeiro século.

O apóstolo Paulo, no mesmo sentido, defendeu que o Evangelho, a morte e ressurreição de Cristo, representou a unidade humana em um único propósito. Ele argumentou que todas as pessoas eram iguais, sem nenhuma distinção. Todos são herdeiros de Jesus e de seu sacrifício.

Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois vós sois todos um só em Cristo Jesus.

Gálatas 3:28
A Bíblia afirma que somos livres em Cristo.
A Bíblia afirma que somos livres em Cristo.

O cristianismo, portanto, foi desde o princípio um movimento integrador e renovador. As pessoas pobres e injustiçadas foram as primeiras a aderirem ao Evangelho, porque viam em Jesus uma esperança e sentiam que sua mensagem provia solidariedade entre elas. Ao longo do tempo, a religião cristã foi mal interpretada diversas vezes, e utilizada para oprimir em vez de libertar os seres humanos. Todavia, é inegável que o cristianismo contribuiu para a ampliação de direitos, pois a Palavra de Deus considera que todos são iguais, rompendo com a classificação e separação por critérios econômicos, políticos e sociais.

Através do cristianismo, o estado foi aos poucos se separando da religião, até a cisão definitiva a partir do século XVIII. Além disso, contribuiu para o advento de conceitos filosóficos nunca pensados antes, como a própria igualdade universal e liberdade natural dos seres humanos. Mesmo as ideias liberais e iluministas só foram possíveis dentro de um contexto de desconstrução da dominação absoluta das classes políticas por parte dos princípios de solidariedade e reciprocidade.

Os valores da Declaração dos Direitos Humanos

Dissemos que os valores de solidariedariedade e reciprocidade cristãos influenciaram a redação da DUDH. Resta-nos, então, abordar quais são seus principais artigos. Muitos acreditam que os direitos humanos protegem bandidos e garantem a impunidade, mas não é verdade. Eles partem do pressuposto que o ser humano é dotado natualmente de direitos inalienáveis, ou seja, que não podem, jamais, ser violados.

Antes da conquista desses direitos, as pessoas eram julgadas de forma declaradamente parcial, com a desigualdade imperante nas sentenças e condenações. Para se ter uma ideia, a isonomia jurídica, a imparcialidade, só foi alcançada minimantemente nos países ocidentes no século XX, com o fim das colonizações. E mesmo assim, pessoas pretas e pobres ainda são julgadas de um modo mais punitivista do que em comparação com os outros povos.

Os direitos humanos asseguram, invariavelmente, a presunção de inocência, um dos pilares da harmonia sociojurídica que vem sido adquirida nos últimos dois séculos. Isso quer dizer que antigamente os acusados de crimes deveriam provar que eram inocentes. Na prática, as pessoas poderosas acabavam por acusar as demais de vários crimes, e eram eles que tinham que provar suas inocências. Hoje, quem faz a acusação precisa provar a culpabilidade do réu, o acusado.

Igualmente os direitos humanos defendem um julgamento justo e imparcial, que garanta advogados (defesa), promotores (acusação) e juízes (moderação) independentes. Ninguém deve ser preso arbitrariamente, e pressupõem o aguardo do julgamento em liberdade, já que o acusado só pode ser declarado culpado após a condenação e o término do processo penal. Além disso, uma das principais disposições é a privacidade e a liberdade de locomoção, algo que os regimes totalitários insistiram em controlar publicamente. Como em nenhuma outra época, atualmente vivemos em uma realidade em que a vida privada deve ser respeitada, assim como as expressões culturais, opiniões políticas e credos religiosos.

Eleanor, mulher do ex-presidente estadunidense Franklin Roosevelt, segurando a primeira edição impresa da DUDH em 1949.
Eleanor, mulher do ex-presidente estadunidense Franklin Roosevelt, segurando a primeira edição impresa da DUDH em 1949.

Os principais artigos da Declaração dos Direitos Humanos

Vamos ver alguns dos artigos da Declaração.

Artigo 1

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 

Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 3

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo 7

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo 10

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Clique para ver a Declaração na íntegra.

Uma luta contínua em favor da igualdade

A soberania das nações é uma realidade quase inquestionável na ordem mundial. Isso significa que os estados possuem amplo e total poder sobre seus territórios, e nenhum outro pode questionar suas ações. A não ser, talvez, que o Conselho de Segurança da ONU interfira em alguma ação extraordinária, como ocorreu algumas poucas vezes, e somente em países pequenos. Na prática, as Nações Unidas atuam como uma entidade moderadora de conflitos, e principalmente como um canal de comunicação, diplomacia, cooperação e orientação.

Por isso, como dito, as injustiças sociais ainda permanecem exacerbadamente nos países do mundo. A ONU, a Anistia Internacional e outras organizações possuem intervenções limitadas, que precisam ser incrementadas ao redor do mundo. Portanto, é importante reconhecer que a luta por igualdade e liberdade é incessante, e um dever dos cristãos. “Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”… “Bem aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” Mateus 5:6 e 5:10.

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